Há uns dias atrás, fui procurada por uma senhora, de quarenta e poucos anos, que trazia sua filha, de vinte e um anos, para uma consulta. As duas entraram juntas na minha sala. Observei a mãe ansiosa querendo falar, falar, falar. A filha quieta, cabisbaixa, rosto muito pálido, olheiras fundas, cabelos pretos compridos e soltos, um pierce no lábio inferior, toda vestida de preto. A mãe começou dizendo que havia um grave problema com a filha e que elas precisavam de ajuda. Já a havia levado em psiquiatra, psicóloga, em neurologista, em diversos lugares de ajuda e cura espiritual, e até agora nada solucionara a questão que causava grande sofrimento para a filha. Elas receberam a indicação de que deveriam me procurar porque eu faço um trabalho que tem ajudado muitas pessoas que não encontraram soluções em outros lugares e puderam ser ajudadas com as constelações familiares. Então, entraram na Internet para buscar alguma informação sobre o assunto. Pedi para a filha me dizer o que é que acontece com ela.
Disse-me que, desde os treze anos de idade têm um pesadelo do qual nunca se lembra de quem ou o que aparece para ela, mas sempre entra em sofrimento como se lutasse com alguém ou com um animal felino. Surgem, então, por todo o corpo, arranhões que vertem sangue. (Nesse momento a mãe queria que ela me mostrasse as costas toda arranhada, porém, observando o constrangimento imediato da moça, eu disse que não era necessário ver, pois eu acreditava no que ela estava me contando. Daí minha atenção se voltou, imediatamente, para os antebraços, pescoço e colo, onde as cicatrizes de arranhões eram evidentes). Essa situação lhe causa muita dificuldade de relacionamento com as pessoas, principalmente no emprego e com namorado. Ela sente vergonha toda vez que alguém pergunta sobre os arranhões. Prefere não sair de casa por vários dias até que as marcas não chamem tanto a atenção. Disse que gosta de se vestir sempre de preto, que detesta roupas brancas, e que esses pesadelos são mais constantes na época de finados até o natal. (Nós estamos no início do mês de dezembro, bem no meio do período crítico).
Comecei a fazer as perguntas de praxe, do ponto de vista do constelador, para tentar olhar para os excluídos do sistema familiar. Nesse momento, a moça pediu o auxílio da mãe para falar sobre a própria família e também sobre a família do pai, posto que ela não soubesse quase nada a respeito dos antepassados e, principalmente, pelo fato dos pais serem separados desde que ela tinha doze anos de idade. Tendo, então, como primeiro excluído o próprio marido, a mãe desandou a falar sobre a desestruturada família dele, a começar pelos quatro abortos praticados pela própria sogra. Atentei para o fato da moça ter sido separada do pai aos doze anos e ter dito, anteriormente, que o distúrbio teve início aos treze. Deixei essa informação guardada num canto do meu coração. Seria o caso de “amor interrompido”? “Há oito anos ela é o centro das atenções no âmbito familiar, onde é considerada “a diferente”, “a louca”, “a possuída pelo demônio”, “um caso de obsessão”, “a amaldiçoada”, e assim por diante… será preciso prestar mais atenção. O diagnóstico psiquiátrico, segundo informação da mãe, é “transtorno de personalidade histriônica”, ou seja, um tipo de histeria. Para quem quiser ter conhecimento desse tipo de transtorno, é só entrar neste endereço abaixo, onde nós também pesquisamos:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Transtorno_de_personalidade_histri%C3%B4nica
Lembrei-me, instantaneamente, que Bert Hellinger disse, no curso avançado que fiz lá em Águas de Lindoia, que por trás de uma patologia mental séria, deve ter havido um assassinato em família. Perguntei, à mãe, se ela tinha conhecimento de ter havido alguma coisa trágica dentro da família, assim como um assassinato. Foi quando, com um movimento no globo ocular que denotava estar olhando para um passado distante, a mãe se lembrou de ter ouvido a avó contar sobre uma tragédia dentro da sua própria família. Sua bisavó, do lado materno, matou a própria filha colocando veneno na comida, isto porque a moça engravidou e constituía uma grande vergonha para os pais, pelo fato de ainda ser solteira. Morreram a mãe e a criança. Tão logo esse fato foi mencionado, notei uma mudança significativa na fisionomia da moça. Foi, então, que ela disse, para a mãe, que nunca ouvira falar sobre esse assunto! Seus olhos demonstraram espanto e, ao mesmo tempo, é como se questionassem: -“Como é que você nunca me falou sobre isso? ” Ao que a mãe explicou que, quando soube dessa história, ficou tão horrorizada que nunca mais quis pensar no assunto. E que não havia mesmo comentado nada com a filha, nem com a sua própria mãe.
Conversamos sobre outras coisas mais e marcamos a constelação para o horário em que, habitualmente, trabalho com um grupo de pessoas. Minha intuição me disse que esse caso não deveria ser trabalhado com bonecos. Dois dias depois dessa conversa, lá estávamos nós para montar a constelação. Dessa vez a mãe não compareceu, e a moça veio acompanhada por um irmão. Não havia necessidade de falarmos sobre o assunto, mesmo porque a moça havia manifestado uma inquietação quando lhe disse que a constelação seria com um grupo de pessoas. Na ocasião eu expliquei que não havia necessidade de expô-la e também que, além da ética estabelecida no grupo, as pessoas eram desconhecidas para ela e nem precisaríamos dizer qual o seu nome. Isso a tranquilizou. Então, sem falarmos absolutamente nada diante do grupo, foi pedido à moça que escolhesse alguém que a representasse. Apenas uma pessoa, naquele momento, seria o bastante para olharmos para o comportamento dela. Escolheu uma mocinha franzina e de aparência frágil, como ela. A representante começou a andar pela sala e dizia: – “estou perdida, não sei onde me encontro! ” Andou, andou e, de repente, foi se esconder atrás de uma reentrância na parede. Então disse que estava sentindo vergonha. (Lembrando que a cliente havia me dito que sente muita vergonha).
Porém, ficava espiando e olhando fixamente para um determinado ponto no piso do salão. Ali colocamos uma mulher deitada. A mocinha saiu do esconderijo, andou em torno daquela que estava no chão e, desesperadamente, começou a se coçar. Coçava o corpo todo e já estava ficando com vergões vermelhos. Pedimos para entrar a representante da mãe da cliente. E a pessoa escolhida também começou a se coçar exatamente como a filha. Uma não chegava perto da outra, mas as duas olhavam insistentemente para a morta. Ficaram paradas nos seus lugares e o único movimento era a coceira. Colocamos outra mulher deitada ao lado da morta. Sem que falássemos nada, essa segunda morta se encolheu ficando na posição de feto, encostou-se na primeira que até então estava inerte, a qual, nesse momento, abriu os braços e acolheu como se fosse uma mãe acolhendo sua filhinha. Isso ficou muito claro! A cliente olhou-me com espanto! Imediatamente a representante da cliente parou de se coçar e foi se deitar bem abraçadinha àquela que estávamos vendo como um bebê.
Sua fisionomia se transformou demonstrando uma grande alegria. Depois de alguns segundos disse: – “Aqui é o meu lugar”. E a criança também ficou feliz. Nesse momento, também a representante da mãe da cliente parou de se coçar. Sentou-se no chão e ficou olhando para a filha abraçada com o bebê. Disse que agora estava bem e que era bom olhar para a filha com aquele sorriso nos lábios. Mas permaneceu à distância. A seguir, depois de alguns minutos, deitou-se no chão e desligou-se totalmente da cena. Fechou os olhos e pareceu dormir. O movimento cessou novamente. Até agora, as únicas pessoas claramente definidas eram: a representante da cliente e a representante de sua mãe. Fizemos, então, entrar uma outra mulher (uma senhora) e dissemos a ela para procurar o seu lugar no campo, sem dizermos de quem se tratava. (Na verdade, estávamos fazendo um teste para ver se confirmava o que estávamos pensando, que a primeira morta seria a moça que foi envenenada e a segunda morta seria seu bebê).
A senhora ajoelhou-se ao lado da primeira morta e, em seguida, disse estar sentindo uma grande angústia, dor no peito, e a sensação de ter sido culpada. O bebê agarrou-se na representante da cliente e começou a gritar dizendo que tinha medo daquela mulher. A representante da cliente começou a tremer e disse estar sentindo muito frio e que também tinha medo. Disse que precisava se esconder daquela mulher. Nesse instante ficou claro, para nós, que aquela senhora representava a assassina. A representante da cliente começou a se coçar novamente. Observamos que a representante da mãe, que estava deitada de costas e desligada daquilo que estava acontecendo, também começou a se coçar outra vez. Sentou-se no chão e virou-se de frente para ver o que se passava. Disse que não gostava daquela senhora e não podia olhar para ela. Sentia ânsia de vômito, assim como a filha também disse estar sentindo. Bem, aqui chegamos no momento chave da constelação – o reconhecimento do fato desencadeante do grande nó familiar, e da identificação da nossa cliente com aquele bebê que foi assassinado junto com a mãe.
É preciso lembrá-los que as pessoas presentes não sabiam nada a respeito da tragédia familiar. Chamou-nos a atenção o fato da representante da mãe da cliente ter os mesmos sintomas que a filha. Não havia esse dado na fala da mãe, no momento da entrevista, sendo que só demonstrava um grande sofrimento pela situação da filha, e muita ansiedade para encontrar uma solução. E é importante também lembrar que a mãe não estava presente durante a constelação. Segundo as observações de Bert Hellinger, às vezes a criança quer fazer algo por alguém que ela ama – seja pelos pais, avós ou irmãos. É como se ela dissesse: eu faço isso por você, mamãe. Eu expio, eu morro, eu adoeço, eu fico louco, no seu lugar mamãe, para que você permaneça viva e com saúde. Porém, esse amor da criança pelos pais, por exemplo, é um amor cego, totalmente inconsciente.
O adulto, com sua alma de criança, ainda continua, inconscientemente, a acreditar que pode se colocar a serviço da salvação dos pais. E, então, se identifica com alguém que foi excluído da família de origem do seu genitor, para que assim o pai ou a mãe não precise se sacrificar em prol do sistema. A alma da criança faz isso, para que o outro não precise fazer. Como, dentro da Lei do Pertencimento, todos têm o mesmo direito de pertencer, então, para que o sistema se reequilibre, quando há um membro familiar excluído, a alma coletiva da família cobra de alguém que vem depois, nas futuras gerações, para expiar por aquela exclusão. No caso, como a representante da mãe, que é aquela que captava os movimentos da alma da pessoa em questão, mostrou-nos claramente que tinha os mesmos sintomas da filha, e levando-se em conta que os sintomas permaneceram em potencial na alma da mãe, eclodiram como reais na filha, pelo grande amor que sua alma dedicou à mãe.
A filha “enlouqueceu” para que a mãe “não enlouquecesse”. Não fossem essas observações e conclusões tiradas por Bert Hellinger, não teríamos condições de olhar para o lugar onde haveria de estar a solução para a questão da cliente. Ficaríamos apenas olhando para o assassinato em si. O que é importante, é claro, mas não é o suficiente para libertar a cliente do mal que a comete. Fomos, a partir daí, para a etapa seguinte da constelação – a desatadora dos nós. Os instrumentos usados nessa fase são as “frases de solução” ou as ”palavras de poder”. Como nada é por acaso, eu e minha aluna Márcia Rosângela Bertim, que juntas conduzimos essa constelação, tínhamos acabado de fazer o curso com Laszlo, justamente com ênfase nas “frases de solução”.
Maravilha! Era tudo que precisávamos e tudo que faria a diferença! Era a hora de começar a colocar cada coisa, ou melhor, cada pessoa no seu devido lugar, usando a intuição e confiando, totalmente, nos movimentos do espírito que busca a harmonia, a reconciliação, o reequilíbrio, a paz e o amor dentro do sistema. Trouxemos a própria cliente para o campo e a colocamos no lugar onde estava a sua representante. Pedimos que olhasse para aquela senhora que continuava ao lado da morta. A cliente começou a tremer, ficou gelada e as mãos suando frio. Sentiu ânsia e disse que não conseguia olhar para aquela pessoa que lhe causava horror. Nesse instante a senhora começou a chorar convulsivamente e dizia saber que era ela própria que havia causado tanto dano. Disse estar arrependida do que havia feito, mas por outro lado, sentia que tinha sido obrigada a fazer algo que ela não queria.
Para surpresa nossa, a cliente disse: – “Agora eu sei do que você está falando! Hoje a minha avó contou para a minha mãe, e para mim, que foi o seu marido que a obrigou a fazer o que fez”. Imediatamente entramos com as frases de solução entre a mãe assassina e a filha. Tínhamos observado, desde o início, uma estranha calma na representante da filha envenenada. Quando a mãe estava dizendo “me desculpe…”, a filha espontaneamente respondeu: – “não precisa me pedir desculpas porque eu mereci o que foi feito, e quem tem que se desculpar com você, sou eu, pois fiz você sofrer demais! ” A filha sentou-se e se abraçou à mãe dizendo: – “me desculpe, me desculpe, eu te entendo e te amo”. (Incrível, pois ninguém sabia de nada!). A criança continuava agarrada na representante da cliente. Diante de tal situação, trouxemos um representante para o marido da assassina.
O campo mudou completa e imediatamente. Pudemos sentir a austeridade e arrogância dessa pessoa que deveria ser o tataravô da cliente. A criança se desgarrou e foi colocar-se entre a mãe e a avó, protegendo-se do homem. A cliente pôde olhar para a senhora de um jeito diferente – não mais o olhar de acusação ou de medo, mas o de complacência. Outras tantas frases de solução foram afirmadas, até que fomos vendo alterações na postura, nas atitudes e nos sentimentos daquele homem. Quando chegou o momento adequado, a senhora pôde entregar ao marido todo o peso da culpa que carregou até hoje.
Ele aceitou a responsabilidade e acabou chorando de arrependimento. A representante da mãe da cliente, que durante todo esse processo estava alheia, mergulhada num sono profundo, acordou de repente, levantou-se e foi se colocar ao lado da filha. Pela primeira vez, na constelação, ela se aproximou da filha. As duas se abraçaram e pedimos para dizer algumas frases, uma para a outra. E, finalmente, mãe e filha lado a lado, diante do casal de tataravós da cliente, foram por eles abençoados e os ouviram dizer: – “Nós levamos tudo o que é nosso, e deixamos vocês só com o que é de vocês. Somos muito gratos a vocês por terem nos proporcionado a redenção, e assim, poderemos encontrar a paz. Deixamos vocês também em paz, principalmente nossa tataraneta, pela demonstração de amor e lealdade ao nosso sistema familiar”.
The End
Três dias depois, a mãe me ligou para agradecer pelo benefício que a filha recebeu, pois compreendeu que não se tratava de maldição, nem de endemoniamento, e com isso perdeu o medo de dormir. Foi, então, que ela me contou que fazia uma semana que a moça não se deitava para dormir e passava a noite toda assistindo filmes na televisão e andando pela casa como um zumbi. Disse, também, que quando a filha tinha o “maldito” pesadelo, a energia da moça se esgotava de tal forma, que ficava dias fora do ar, sem contato com a realidade. (Na constelação, quem ficou sem contato com a realidade foi a mãe, através da representante). Feliz, contou que a filha passou três noites de sono tranquilo e sabia que seria assim por mais tempo. Alertei a mãe sobre a necessidade de, numa outra ocasião, constelar a falta do pai na vida da filha. Bem, o mais importante agora é contar para vocês o que vim a saber através desse telefonema.
A mãe, em conversa com a mãe dela, que nunca havia falado sobre o assunto, contou que aquele senhor, o tataravô, era um senhor de terras muito rico e muito importante. Devido ao seu status, desenvolveu uma atitude egocêntrica, autoritária e déspota. Naquela ocasião, a filha, com apenas treze anos, engravidou de um rapazinho que era de classe inferior, talvez um serviçal das fazendas do pai. ATENÇÃO PARA A IDADE DA MOÇA. O pai, ao saber do ocorrido, fez com que a mãe levasse a filha para um local distante, onde permaneceu trancada num quarto até o nascimento da criança. A mãe foi obrigada a fazer isso sob ameaças. Quando a criança nasceu, e era uma menina, a mãe colocou veneno na comida da filha e asfixiou o bebê. O fim dessa mulher foi a loucura.
Vera Bassoi